6.10.06

Mas tens saudades deles, não tens?




ANTÓNIO - Então o que foi que combinaste com o homem?

PAULO - Combinei ele vir ter aqui à beira da fonte. Em principio não há problema ele é sempre pontual. Ainda não são três horas.

ANTÓNIO - Ainda não. Acho que chegamos um bocado cedo demais.

PAULO - Tem calma que não há problema, daqui a pouco vais ver que ele está aí.

ANTÓNIO - E se aparece por aí a Guarda?

PAULO - Tem calma homem, a esta hora estão a esmoer o rancho. Não é tão cedo que vem cá para fora. Está muito calor. Tem mais sorte que eu!

ANTÓNIO - Sempre podemos dizer que o carro aqueceu.

PAULO - É, fuma um cigarro que isto não vai dar problema.
Tens a certeza que ninguém te seguiu?

ANTÓNIO - Tenho, pelo menos segui as regras. Fui olhando a ver se via alguma coisa suspeita mas não me apercebi de nada.

PAULO - Vieste directamente para aqui?

ANTÓNIO - Não. Primeiro fui ao café do Tio Xico e só depois é que vim para cá, mas antes de sair a vila ainda dei umas voltas e só depois é que vim, e fui sempre dando uma vista de olhos.

PAULO - Tens um cigarro para mim? Já não fumo desde ontem.

ANTÓNIO - Toma lá (tira um cigarro e oferece o maço).


PAULO - Como tem sido as coisas com a casa?

ANTONIO - Agora estão melhor. O senhorio já não anda tão curioso. Acho que ele e a mulher acreditaram mesmo que eu e a camarada Rosa éramos casados.

PAULO - É bom. Convém que não exista a mais pequena suspeita sobre vós, caso contrário está tudo perdido.
"Eles" andam umas feras. O mês passado fizeram umas prisões numa vilória aqui perto.

ANTÓNIO - Não será melhor abrir o capôt (dirige-se para a frente do carro)? Sempre dá menos nas vistas...

PAULO - É, mas a esta hora é dificil aparecer alguém. Com esta torreira só um doido é que andava por aí. (Tira um lenço do bolso e limpa a testa).

ANTÓNIO - Já serão três horas?

PAULO - Para lá com isso das horas que me deixas nervoso! Já te disse que não tarda nada e o homem está por aí!
É um camarada com muita experiência e arranja sempre maneira de trocar as voltas à Guarda.

ANTÓNIO - Não leves a mal estar sempre a perguntar a mesma coisa camarada, mas aquela situação da casa com o senhorio a meter o nariz constantemente deixou-me nervoso.

PAULO - É sempre assim. De cada vez que é preciso mudar de casa, lá vem o rol das perguntas. Há uma que vocês tem que ter muito cuidado, que é: Se não tem filhos?

ANTÓNIO - Essa já ele fez. Foi logo das primeiras…

PAULO - E então que responderam vocês?

ANTÓNIO - Respondemos que a Rosa não podia ter filhos.
Acho que resolvemos o problema logo por ali, que eles nunca mais disseram nada.

PAULO -É. Normalmente resulta. As pessoas tem medo de ofender.

ANTÓNIO - Ó camarada, tu tens filhos?

PAULO - Agora és tu que estás a ser curioso!
António, já te avisei que quanto menos souberes melhor para ti.

ANTÓNIO - Tens razão camarada mas nesta vida de clandestino uma pessoa quase só fala com os camaradas do partido...

PAULO – Ora…
Quando vais para o mar mais o pessoal da companha tens muito com quem falar.
Como queres servir o partido se não falares com os teus companheiros da pesca?

ANTÓNIO - Nisso tens razão, mas o que eu queria dizer era asim, como te hei-de explicar…
Falar assim daquelas coisas mais banais. Sei lá, a mulher os filhos a família. Percebes o que digo?

PAULO - Claro que percebo. Também eu sinto falta de algumas coisas.
Por acaso sabes à quanto tempo não vejo os meus filhos?

ANTÓNIO - Então sempre tens filhos, eu bem que me queria parecer.
Um homenzarrão como tu ia lá não ter filhos. Quantos são?

PAULO - Tenho dois. Um rapaz e uma rapariga. Mas nasceram antes de entrar nesta vida.
Quem é clandestino não pode ter filhos. Uma pessoa dum momento para o outro pode ter que fugir da policia e os filhos são uma complicação.

ANTÓNIO - Mas tens saudades deles, não tens?

PAULO - Claro que tenho...

ANTÓNIO - Qual deles é mais velho, o rapaz ou a rapariga?

PAULO - A rapariga. Vai fazer 13 agora em Julho.

ANTÓNIO - Em que dia de Julho? A minha mãe também fazia anos em Julho.

PAULO - Dia 24 de Julho. Nunca mais esqueço esse dia! Saber que tudo tinha corrido bem...
É daquelas coisas que um homem nunca mais esquece.
Com o rapaz já foi diferente. Nasceu 5 anos depois e logo a seguir tive que desaparecer.

ANTÓNIO - Nunca mais os viste?

PAULO - Vi-os 4 vezes. Os camaradas conseguiram arranjar um encontro de meia hora das duas últimas vezes.

ANTÓNIO - Ouve... (António levanta-se e olha a estrada) Acho que vem aí um carro!

PAULO - Espreita aí para o motor desse lado. (Deslocam-se os dois para a frente do carro).

ANTÓNIO - Paulo...

PAULO - Cala-te! Olha aí para o motor já te disse!

ANTÓNIO - É a Guarda?

PAULO - Não. Já podes descansar. A Guarda não tem carros vermelhos.

ANTÓNIO - Porra assustou-me! Que horas são? Já tem de ser mais de três horas!

PAULO - (olha para o relógio) São três e cinco. Não é tarde.

ANTÓNIO - Mas tens a certeza que ele vem, não tens?

PAULO - Tenho homem! Sossega.

ANTÓNIO - Sim de certeza que vem... Se tu dizes que ele é responsável, então é porque vem. Ele tem filhos como tu?

PAULO - Pára lá com essa história dos filhos!
Isso não é conversa para se ter numa hora destas! Nem destas nem de nenhuma. Isso é assunto que não te diz respeito.

ANTÓNIO - Eu sei tens razão. Desculpa. Esta coisa de estar aqui à espera...

PAULO - Já te disse que tenhas calma. A Guarda não gosta desta caloraça! Vais ver que antes das quatro e meia não saiem da toca.
Arranjas-me mais um cigarro?

ANTÓNIO - Sim, (passa os cigarros) podes ficar com o maço.

PAULO - Não obrigado (devolvendo o maço). Quando chegar à cidade compro.

ANTÓNIO - Ora da cidade vieste tu. Fica lá com os cigarros que eu depois compro antes de ir ao mar.

PAULO - A que horas tens "ordens"?

ANTÓNIO - Antes das sete não é de certeza. O mar tem estado cão!

PAULO - Ó António, já pareces um pescador a falar ah!

ANTÓNIO - É. Nunca pensei vir a conseguir.
A ajuda do Mestre Manel foi muito importante. Ainda me lembro que da primeira vez …
As tripas quase me saltavam pela boca!

PAULO - Por aí já tu vez o que é ir ao mar para ganhar uma côdea.

ANTÓNIO - Tens razão. Se a minha familia soubesse da minha vida agora...

PAULO - Já passam dez minutos! Não é costume o homem atrasar-se. (Paulo levanta-se olhando para o relógio).

ANTÓNIO - Terá havido problema com a policia?
Ele por onde vinha; Pela estrada antiga ou pela nova?

PAULO - Não te sei responder. O que ficou combinado foi ele vir ter aqui junto da fonte. De qualquer modo não é muito importante a estrada por onde ele vem, desde que chegue cá...

ANTÓNIO - Sim tens razão.

PAULO - Tem calma homem, não fiques para aí nervoso.
Senta-te ali na beira da fonte e sossega. Não te adianta estar aí a andar de um lado para o outro e se alguém te vir até vai estranhar.

ANTÓNIO - Eu sei; só que começo a ficar inquieto e aqui também não temos grandes hipóteses de fuga.
Não será melhor fechar o capôt? (Dirigindo-se para a frente do carro).

PAULO - Ora, antes de o carro estar a trabalhar, já a guarda nos tinha cravado de balas.

ANTÓNIO - Mas então que fazemos se houver problema?

PAULO - Tem calma Antonio que não vai haver problema nenhum. Tens mesmo a certeza que ninguém te seguiu?

ANTÓNIO - Tenho já te disse. Se eu disse que tenho é porque tenho; não te parece!
Fiz tudo como de costume e aliás foste tu que me explicaste como proceder.

PAULO - Eu sei muito bem o que te expliquei, não preciso que me lembres. Mas todos os cuidados são poucos!
Para evitar encontros com a policia é que o Partido tem regras de segurança que não podem ser postas em causa!

ANTÓNIO - Eu sei muito bem que o partido tem regras de segurança. Não é preciso estar sempre a falar do mesmo.

PAULO - Calma Antonio. Eu só te lembrei as nossas regras. Sabes muito bem que elas são iguais para mim e para ti.
O nosso partido é feito da igualdade, mas também dos deveres!

ANTÓNIO - Eu sei.

PAULO - Agora quem começa a ficar preocupado sou eu. Já passaram mais de vinte minutos. Começa a ser arriscado estar aqui. Espera vem aí uma motorizada. (Levanta-se e olha para o fundo da estrada).

ANTÓNIO - Então, é ele?

PAULO - Não, não é ele! (Dirigindo-se para junto de António).

ANTÓNIO - Como vamos fazer? Marcamos novo encontro?

PAULO - Acho que é melhor sair daqui. Já deviamos ter ido embora à mais tempo, não tarda a Guarda aparece.

ANTÓNIO - Tens razão. Como vamos fazer.

PAULO - Para já vamos sair daqui.

ANTÓNIO - Sim, mas temos que combinar como vamos fazer.

PAULO - Tenho que falar com outros camaradas e ver se houve problemas com a policia.

ANTÓNIO - Achas que a casa pode estar em perigo?

PAULO - Ora António?
As casas do Partido estão sempre em perigo! Até nós se ficarmos aqui muito tempo estamos em perigo.

ANTÓNIO - Desde o principio que estamos em perigo. Eu bem me parecia que isto não ia correr bem.
PAULO - É melhor tu e a camarada Rosa durante os próximos dias terem o máximo de cuidado.

ANTÓNIO - Achas que queime os papéis que tenho lá em casa?

PAULO - Papéis?!!!

ANTÓNIO - Sim, são alguns livros meus e papéis...

PAULO - Mas tu não sabes que é expressamente proibido guardar papéis nas casas do Partido?

ANTÓNIO - Sim, mas eu e a Rosa...

PAULO - (Paulo interrompe António) - Não digas mais António. Vamos sair daqui imediatamente!
Volta para a vila e aguarda o sinal do costume para marcar novo encontro. Vá vai-te embora. (Paulo dirige-se para a porta do carro)

ANTÓNIO - Paulo eu queria dizer uma coisa...

PAULO - (abrindo a janela do carro) - Eu sei que tu e a Rosa estão a viver juntos António.
Tenham cuidado com crianças... Na próxima falamos disso.

Adeus. Felicidades para vocês.

ANTÓNIO - Adeus Paulo, e obrigado!


FIM

Lobo

28 Abril 2002

5 Comments:

At 4:01 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Porque até as coisas banais fazem falta.

 
At 5:25 da tarde, Blogger Klatuu o embuçado said...

Muito interessante... Nunca será demais recordar os que se sacrificaram por uma liberdade futura de que não conheceriam o sabor... (e, entretanto, também «tinham que» viver).
Gosto de comunistas da velha guarda... têm colhões!

Abraço.

 
At 2:16 da manhã, Blogger Yashmeen said...

Tenho saudades desta gente. Convivi com eles de perto na minha adolescência e aprendi coisas que nunca esquecerei e que fizeram de mim quem sou.

 
At 11:19 da tarde, Blogger Lilith said...

Felizmente houve 25 de Abril! Se assim não fosse, muitos de nós passariamos pela clandestinidade.

 
At 12:57 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Apesar de apenas ter lido na diagonal, parece-me interessante para desenvolver uma curta. Vou ler com mais atenção e depois comunico algo!

 

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