9.3.06

Para quê? Já passou tanto tempo…



Sabe Senhor, nunca pensei vir aqui parar! São aquelas coisas da vida. Hoje a gente está bem e amanhã…
Aquilo era uma Fábrica boa, depois não se sabe o que aconteceu. O trabalho começou a faltar. Quer dizer, a gente tinha trabalho, só que não era assim certinho como antigamente. Depois os ordenados começaram a atrasar e a vida começou a entortar.
Eu não sei se o Senhor, faz ideia do que isso é? Uma pessoa começa a pedir emprestado hoje, só por uns dias, até a Fábrica pagar. Sabe, uma pessoa está a contar com o dinheirinho no fim do mês, para pagar as coisas, e de um momento para o outro, sai tudo ao contrário. Uma pessoa, começa a ter vergonha de andar na rua. A gente passa, e as pessoas olham prá gente…
Ninguém gosta de estar a dever. Sabe, a gente pede emprestado por necessidade. Se nos pagassem a “féria”, a gente não precisava de pedir nada a ninguém. É pouco, mas a gente lá vai “tenteando” a vida. A mulher também trabalha, e uma pessoa lá vai governando a coisa. Agora quando é assim, é uma desgraça!
A minha desgraça foi quando a fábrica fechou!
Sabe, naquele dia foi uma tristeza muito grande. Parecia que tava a mirrar todo por dentro. O Senhor num imagina como aquilo é. A gente fica meia perdida, sem saber o que fazer. Sabe fica-se meio aparvalhado. A gente num percebe nada, do que se está a passar…
Depois da Fábrica fechar, ainda tentei aguentar a vida. Olhe que nem nas obras, arranjava trabalho! O Senhor não faz ideia, o que é uma pessoa, ir às obras pedir trabalho, e não haver uma porta que se abra. Tá sempre tudo ocupado. Nunca à lugar. Tá sempre tudo cheio! Eles preferem os de fora… Coitados desses. Eles também precisam de ganhar a vida. São gente como nós…
Sabe, quando ia para casa, era como um castigo. O Senhor não imagina, como a gente se sente. A mulher a perguntar: - “Então? Conseguiste arranjar alguma coisa?” Uma pessoa a saber que tem a renda já dois meses atrasada, a conta da mercearia a crescer… Uma pessoa sente vergonha. Muitas vezes eram os vizinhos que traziam qualquer coisa para os miúdos comerem… Sabe, a gente tem tanta vergonha nesses momentos. O Senhor não faz ideia!
Uma pessoa ao princípio, pensa que aquilo é passageiro. A gente está habituada a desenrascar-se, e qualquer coisa se há-de arranjar. O problema é que não se arranja.
Olhe que nem os meses atrasados, nos pagaram! Fecharam as portas e ficamos sem nada!
Foi assim que eu vim parar aqui…
Houve um colega, que não aguentou, e atirou-se da ponte! Eu ainda pensei acabar com tudo, mas quando cheguei à beira do rio, faltou-me a coragem, sabe. Uma pessoa lembra-se dos filhos...
Os filhos ainda é o que custa mais!
O Senhor tem filhos?
Eu já não me lembra bem, como é que foi. Acho que foi depois de ter andado à procura de trabalho. Sabe, táva tão desanimado, que me sentei na beira dum muro e fui ficando ali. Não conseguia ir para casa. Tava tão cansado de tudo…
Já não aguentava aquilo. Sentia-me um falhado. Uma pessoa tem a obrigação de sustentar a família não é? Eu não conseguia!
A Mulher já nem perguntava nada, para quê, não é? Certas coisas, estão na cara, vêem-se logo. Para quê perguntar?
Devia dinheiro a toda a gente!
O Senhor não imagina a vergonha que se sente… Depois as pessoas fazem comentários, começam a chamar caloteiro, e isso dói sabe. Tomara eu, não dever um tostão fosse a quem fosse. Uma pessoa não paga por não poder, e se pedi, foi por necessidade. Eu não tinha trabalho! Ainda hoje sinto vergonha…
Agora ando para aqui. Deixei de ir a casa. Não conseguia. Fui ficando por aqui…
Comecei a ficar ali em baixo, na soleira de uma porta, mas as pessoas chamaram a Policia e tive que sair de lá. Não é por mal, sabe, só que as pessoas não gostam de nos ter ali a dormir, à porta do prédio.
Às vezes, uma pessoa, sente-se um bocado escorraçada por todos, mas depois, a gente habitua-se e vai ficando por aí.
No Inverno com o frio e a chuva é que é mais difícil. Os cartões onde a gente dorme ficam molhados e aí, é que é pior.
Para comer, ao meio-dia, vou ali à “sopa”, ao pé da Câmara. À noite vou aos contentores!
Ali em cima, tem o Supermercado, e eles deitam fora, aquelas coisas que já passou o prazo, e a gente aproveita. Dividimos uns com os outros e trocamos. A gente cá se arranja. Sabe, é melhor que nada.
Outro dia, deram-me uns cobertores. Apareceram aí umas Senhoras com uma carrinha e ofereceram cobertores e café com leite. Veio mesmo a calhar. Nessa noite, estava mesmo muito frio.
É assim a vida de pobre, sabe.
O Senhor vai meter isso lá no seu jornal?
Não meta o meu nome, que eu não quero que os meus filhos saibam que estou aqui.
Para quê? Já passou tanto tempo…
Obrigado por ter estado, este bocadinho, aqui à conversa. Felicidades para si, lá no seu Jornal!

Lobo
9 Março 06
01.16

4 Comments:

At 11:55 da tarde, Blogger Yashmeen said...

Comovente e tocante...

 
At 10:34 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Gostei imenso de ler este teu texto. Infelizmente é a dura realidade que neste momento vivemos e nos faz questionar se esse longinquo 25 de abril valeu apena.É realmente comovente e tocante....mas tu conseguiste dar com esse teu coração enorme, ainda que por pouco tempo, mais que muitos, que nem a coragem tem de olhar. A miséria magoa.... fere...
amedronta.... - É melhor nem ver!!
"Obrigado senhor, por me ter ouvido... Felicidades para si...."
Obrigada João, eu sei do que és capaz.
Bjs, Eu

 
At 5:16 da tarde, Blogger Patrícia said...

Os corações também se gastam, alguem disse.
Por cá, continuam a existir sobreiros de ramos fortes...
Custa perceber que nada mais resta cá dentro.
Não é sentir-se derrotado pelo mundo, pelo destino que se perdeu. Custa o vazio cá dentro.
O ser-se duas pessoas iguais e tão diferentes.
Lá dentro o vazio que nada espera. Um ninguém. Cá fora, identificavel, o pai de um filho.

 
At 5:17 da tarde, Blogger Patrícia said...

Sabes João, podia ter continuado o comentário anterior. Mas mesmo sem ver os olhos do teu homem, há coisas que custam a falar...

 

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