Para quê? Já passou tanto tempo…
Sabe Senhor, nunca pensei vir aqui parar! São aquelas coisas da vida. Hoje a gente está bem e amanhã…
Aquilo era uma Fábrica boa, depois não se sabe o que aconteceu. O trabalho começou a faltar. Quer dizer, a gente tinha trabalho, só que não era assim certinho como antigamente. Depois os ordenados começaram a atrasar e a vida começou a entortar.
Eu não sei se o Senhor, faz ideia do que isso é? Uma pessoa começa a pedir emprestado hoje, só por uns dias, até a Fábrica pagar. Sabe, uma pessoa está a contar com o dinheirinho no fim do mês, para pagar as coisas, e de um momento para o outro, sai tudo ao contrário. Uma pessoa, começa a ter vergonha de andar na rua. A gente passa, e as pessoas olham prá gente…
Ninguém gosta de estar a dever. Sabe, a gente pede emprestado por necessidade. Se nos pagassem a “féria”, a gente não precisava de pedir nada a ninguém. É pouco, mas a gente lá vai “tenteando” a vida. A mulher também trabalha, e uma pessoa lá vai governando a coisa. Agora quando é assim, é uma desgraça!
A minha desgraça foi quando a fábrica fechou!
Sabe, naquele dia foi uma tristeza muito grande. Parecia que tava a mirrar todo por dentro. O Senhor num imagina como aquilo é. A gente fica meia perdida, sem saber o que fazer. Sabe fica-se meio aparvalhado. A gente num percebe nada, do que se está a passar…
Depois da Fábrica fechar, ainda tentei aguentar a vida. Olhe que nem nas obras, arranjava trabalho! O Senhor não faz ideia, o que é uma pessoa, ir às obras pedir trabalho, e não haver uma porta que se abra. Tá sempre tudo ocupado. Nunca à lugar. Tá sempre tudo cheio! Eles preferem os de fora… Coitados desses. Eles também precisam de ganhar a vida. São gente como nós…
Sabe, quando ia para casa, era como um castigo. O Senhor não imagina, como a gente se sente. A mulher a perguntar: - “Então? Conseguiste arranjar alguma coisa?” Uma pessoa a saber que tem a renda já dois meses atrasada, a conta da mercearia a crescer… Uma pessoa sente vergonha. Muitas vezes eram os vizinhos que traziam qualquer coisa para os miúdos comerem… Sabe, a gente tem tanta vergonha nesses momentos. O Senhor não faz ideia!
Uma pessoa ao princípio, pensa que aquilo é passageiro. A gente está habituada a desenrascar-se, e qualquer coisa se há-de arranjar. O problema é que não se arranja.
Olhe que nem os meses atrasados, nos pagaram! Fecharam as portas e ficamos sem nada!
Foi assim que eu vim parar aqui…
Houve um colega, que não aguentou, e atirou-se da ponte! Eu ainda pensei acabar com tudo, mas quando cheguei à beira do rio, faltou-me a coragem, sabe. Uma pessoa lembra-se dos filhos...
Os filhos ainda é o que custa mais!
O Senhor tem filhos?
Eu já não me lembra bem, como é que foi. Acho que foi depois de ter andado à procura de trabalho. Sabe, táva tão desanimado, que me sentei na beira dum muro e fui ficando ali. Não conseguia ir para casa. Tava tão cansado de tudo…
Já não aguentava aquilo. Sentia-me um falhado. Uma pessoa tem a obrigação de sustentar a família não é? Eu não conseguia!
A Mulher já nem perguntava nada, para quê, não é? Certas coisas, estão na cara, vêem-se logo. Para quê perguntar?
Devia dinheiro a toda a gente!
O Senhor não imagina a vergonha que se sente… Depois as pessoas fazem comentários, começam a chamar caloteiro, e isso dói sabe. Tomara eu, não dever um tostão fosse a quem fosse. Uma pessoa não paga por não poder, e se pedi, foi por necessidade. Eu não tinha trabalho! Ainda hoje sinto vergonha…
Agora ando para aqui. Deixei de ir a casa. Não conseguia. Fui ficando por aqui…
Comecei a ficar ali em baixo, na soleira de uma porta, mas as pessoas chamaram a Policia e tive que sair de lá. Não é por mal, sabe, só que as pessoas não gostam de nos ter ali a dormir, à porta do prédio.
Às vezes, uma pessoa, sente-se um bocado escorraçada por todos, mas depois, a gente habitua-se e vai ficando por aí.
No Inverno com o frio e a chuva é que é mais difícil. Os cartões onde a gente dorme ficam molhados e aí, é que é pior.
Para comer, ao meio-dia, vou ali à “sopa”, ao pé da Câmara. À noite vou aos contentores!
Ali em cima, tem o Supermercado, e eles deitam fora, aquelas coisas que já passou o prazo, e a gente aproveita. Dividimos uns com os outros e trocamos. A gente cá se arranja. Sabe, é melhor que nada.
Outro dia, deram-me uns cobertores. Apareceram aí umas Senhoras com uma carrinha e ofereceram cobertores e café com leite. Veio mesmo a calhar. Nessa noite, estava mesmo muito frio.
É assim a vida de pobre, sabe.
O Senhor vai meter isso lá no seu jornal?
Não meta o meu nome, que eu não quero que os meus filhos saibam que estou aqui.
Para quê? Já passou tanto tempo…
Obrigado por ter estado, este bocadinho, aqui à conversa. Felicidades para si, lá no seu Jornal!
Lobo
9 Março 06
01.16
4 Comments:
Comovente e tocante...
Gostei imenso de ler este teu texto. Infelizmente é a dura realidade que neste momento vivemos e nos faz questionar se esse longinquo 25 de abril valeu apena.É realmente comovente e tocante....mas tu conseguiste dar com esse teu coração enorme, ainda que por pouco tempo, mais que muitos, que nem a coragem tem de olhar. A miséria magoa.... fere...
amedronta.... - É melhor nem ver!!
"Obrigado senhor, por me ter ouvido... Felicidades para si...."
Obrigada João, eu sei do que és capaz.
Bjs, Eu
Os corações também se gastam, alguem disse.
Por cá, continuam a existir sobreiros de ramos fortes...
Custa perceber que nada mais resta cá dentro.
Não é sentir-se derrotado pelo mundo, pelo destino que se perdeu. Custa o vazio cá dentro.
O ser-se duas pessoas iguais e tão diferentes.
Lá dentro o vazio que nada espera. Um ninguém. Cá fora, identificavel, o pai de um filho.
Sabes João, podia ter continuado o comentário anterior. Mas mesmo sem ver os olhos do teu homem, há coisas que custam a falar...
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